domingo, 7 de setembro de 2008

LINHA DE PASSE de Walter Salles





de WALTER SALLES e DANIELA THOMAS
Este drama ambientado na periferia de São Paulo é uma estória de tirar o fôlego. Vemos a tela escura por algum tempo e ouvimos um arfar, que pensei ser da pessoa atrás de mim. Aos poucos ele se intensifica e a tela mostra a imagem de Cleuza (excelente Sandra Corveloni), com as mãos na barriga de nove meses. Ela está para dar a luz. Olhando para o horizonte voltamos para uma bandeira, com milhares de mãos por baixo dela, fazendo com que se mantenha aberta. É a bandeira do Corinthians, e a expressão de seus torcedores é tensa e idolatrada. Dentre eles vemos Cleuza ajudando a segurá-la. O jogo é carregado e seu time do coração despenca para a segunda divisão. Agora temos um moto-boy, Dênis (ótimo João Baldasserini), trabalhando e dirigindo como um louco pelas ruas e viadutos de São Paulo. A câmera nos dá a sensação de estarmos em sua garupa todo o tempo. Um bonito menino mulato de seus doze anos, Reginaldo (Kaíque de Jesus Santos), sentado dentro de um ônibus, na janela, com uma expressão séria. Em uma pelada na periferia, o jovem Dario (Vinícius de Oliveira) está passando por uma peneira, pois seu grande sonho é ser jogador de futebol. Em uma igreja evangélica vemos Dinho (excelente José Geraldo Rodrigues) participando de um culto religioso, com toda concentração e fé. Aqui está apresentada toda a família da viúva Cleuza, a qual está prestes a ter seu quinto filho. Sua família mora com esta empregada doméstica na periferia de São Paulo. Seus três filhos mais velhos são brancos como ela, mas o caçula é mulato e não sabe quem é o pai, para seu desespero. Os quatro são altos, magros e bem constituídos. Seus rostos têm aquela beleza que a preocupação e a pobreza imprimem: maturidade forçada. Todo o filme é feito em segmentos, pois retrata, em tempo presente, a vida desses cinco personagens como uma dança de vai e vem precisa e agradável. O clã de Cleuza é apaixonado por futebol, ela inclusive, e todos são bons de bola. Esse é um fator agregador na família. O primogênito Dênis trabalha mais do que é seguro, pois tem um filho com uma jovem que vive com a mãe. Sedutor pede sempre algo a mais para fazer à sua chefa. Precisa desesperadamente de dinheiro, pois está três meses atrasado com a pensão. Prometendo pagá-la depois que quitar a moto (faltam apenas duas prestações) ficará em dia com o pagamento. Dario vai a mais peneiras, mas sempre é recusado, apesar de jogar muito bem. Ele está tão pobre que sua chuteira tem a sola aberta. Seria impossível fazer melhor do que já faz. Reginaldo ao invés de ir à escola, fica o dia todo passeando de ônibus, sendo a coisa que mais gosta em sua vida. Observa os movimentos dos motoristas imitando-os à exaustão, no local e em casa numa Kombi destruída. Odeia ser negro e afirma à mãe que seu pai deveria ser igual a um carvão, para ser da cor que tem, tendo a mãe branca. Kaíque é um ator natural, encantador e carismático. Dinho (José G. Rodrigues em um ótimo desempenho) é empregado em um posto de gasolina, mas está sempre de terno e camisa social, pois vai todos os dias ajudar o pastor da igreja. Este faz o que pode para manter a população desprovida de bens suportar essa enorme carga, tentando passar alguma fé. Em um de seus sermões menciona que o desejo é a vontade do homem e a fé é a vontade de Deus. Essas pessoas são humanas e desejam algo mais em suas casas, um televisor, um sofá, que pagam em doze prestações suadas. Esses dois homens se entendem e se ajudam. Cleuza trabalha em uma casa rica e sua patroa ao perceber que está grávida de vários meses sugere, para seu desespero, que ela se afaste e depois de três meses volte a trabalhar. Esses personagens tão verdadeiros têm os mesmos desejos e aspirações de qualquer pessoa de outro extrato social, com a grande diferença que o dinheiro, fundamental para se estudar e mudar seu padrão de vida, não existe e é quase impossível que eles consigam se superar. Dênis é honesto, mas tem outros companheiros de trabalho que assaltam carros para viverem melhor. Sua profissão é muito discriminada e Salles aponta diversas vezes para esse fato. O pequeno Reginaldo se mete em uma encrenca na escola durante um jogo de bola e sua mãe é obrigada a ir buscá-lo. Nessa ocasião fica sabendo que ele não comparece às aulas faz muito tempo. Precisando trabalhar passa a deixá-lo com uma vizinha. Ela é mãe e pai para os filhos. Seu comportamento é ora delicado, ora violento e masculinizado e este é o que mais prevalece para poder controlar os filhos. É uma verdadeira guerreira que quer preservar a felicidade e honestidade dos filhos. Nosso jovem evangélico, apesar de acreditar em Deus e querer seguir à risca seus preceitos, se vê obrigado a satisfazer sua sexualidade com masturbação. Arrependido pede conselhos a seu amigo pastor. Sua vida é difícil como frentista, sem registro e salário certo. Uma feita, tendo sido roubado na bomba de gasolina, é insultado pelo patrão, que o chama de ladrão e o humilha de todas as formas. De tanto se conter o tempo todo, estoura com o fato e espanca o homem até que ele não se mova mais. Está sem emprego. Dario precisa dar três mil reais para o treinador de um clube se quiser começar a jogar lá. Obviamente não tem esse dinheiro, mas é levado ao banco de espera. Cleuza é despedida sem ganhar um tostão, pois não era registrada, mas continua na lida. Ao perceber o quanto seu filho queria conhecer seu pai, resolve deixar uma foto, que tirara com ele e que rasgara ao meio, para o filho ver, em baixo de sua coberta. Ele era um negro muito forte, grande e motorista de ônibus. Ela a cola com um durex, numa belíssima cena. Denis encontra-se em uma situação financeira muito difícil e resolve seguir uns motoqueiros ladrões, pegando numa caçamba a bolsa que haviam escondido ali. Dá o dinheiro ao filho e sua jovem mãe fica feliz, pois estava com o garoto doente. Isso não fora um perigo tão grande, mas ao dar a bolsa de presente para Cleuza ela abre o zíper e vê uma carteira de identidade, pedindo ao filho que a devolva, pois não quer nada roubado em sua casa. O rapaz está traumatizado por não ver nenhuma possibilidade de realizar seus sonhos e parte para roubar um carro. O roubo é mal sucedido e ele dispara com a moto, acabando por ser atropelado por um carro. O motorista desce e imediatamente o ajuda, mas um desafio passa pela mente de Denis e resolve simular um assalto com arma, pondo a mão dentro do bolso, como se fosse uma arma. O homem apavorado faz o que ele manda. Esse poder de ameaça vai se intensificando e Denis, descontrolado, o obriga a dar voltas e voltas até pararem em um local ermo e desabitado. Lá ele breca o carro e vemos o suor escorrendo em seu rosto retorcido de pavor. Não olhando o rapaz tira seu dinheiro, celular e tudo de valor e coloca em um canto do carro. Sempre sem fitá-lo. Denis grita para que olhe para ele e o veja (como um ser humano, certamente), contudo mesmo o encarando seu pavor não passa. Ordenando-lhe a sair e correr o mais rápido possível, chora de constrangimento e dor pelo que fez e pelo que representa para a maioria da sociedade. Ele poderia ser um bandido! Saindo do carro aos prantos desaparece da cena. Nesse ínterim, Dario, convocado nos últimos três minutos é indicado para marcar um pênalti. Ouvimos gritos, mas seu rosto está imutável. Dinho depois de se embebedar após a briga com seu patrão é encontrado na frente da igrejinha e, auxiliado pelo pastor, vai com outros crentes para o batismo à beira da represa. Um a um, os religiosos são imersos nas águas e quando chega o momento de um paraplégica se doar a Cristo e voltar a andar ela não o consegue, mas é consolada por Dinho, que está furioso com Deus, pois sabe machucar onde mais dói! Seguindo seu caminho vai repetindo as últimas palavras que o pastor havia dito: “andando...”. Repetindo este mantra e caminhando sem parar, consegue reaver sua fé. Reginaldo, misturando-se com alguns motoristas, no terminal de ônibus, entra, sorrateiramente, em um deles e sai guiando, primeiro aos poucos, depois com muita confiança. Assim sendo temos o pequeno jovem, com um semblante realizado guiando, pelas avenidas e viadutos da cidade, um veículo gigantesco. Voltamos para a primeira cena. Lá está Cleuza, totalmente só, arfando a espera de seu quinto filho que chegará!
O elenco trabalha em absoluta sintonia. Sandra sai consagrada de Cannes, ganhando o premio de melhor atriz. Vinícius de Oliveira também foi muito procurado por ter sido o astro de Central do Brasil e João Baldasserini é a mais nova revelação. O filme foi aplaudido em pé e com lágrimas. A fotografia é belíssima e o longa-metragem simplesmente flui, apesar da simultaneidade de cenas. Alguns críticos acham que os diretores foram demagógicos para justificar atos criminosos. Pessoalmente acredito que é muito difícil ser cem por cento honesto, e o tempo todo, em cidades muito grandes, desiguais e desumanas. Ponto para o filme!! Vale a pena conferi-lo.

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