quinta-feira, 31 de julho de 2008

4 meses, 3 semanas e 2 dias




Uma mesa coberta por uma toalha de plástico estampado, em cima um aquário de peixes, diversos objetos esparramados e uma xícara (chá ou café?). Ao lado, uma cama de ferro azul, um tanto descascada, na cama uma jovem de cabelos e olhos escuros e tez clara. Ela aparenta ansiedade e ao seu lado vêem-se papéis escolares e uma mala semi feita. A câmara se distancia e aparece outra cama igual e vemos que é um quarto, possivelmente uma república de estudantes. Esse filme romeno, de Cristian Mungiu, premiado com a Palma de Ouro, dá uma sensação de déjà vu para nós dos países em desenvolvimento. A começar pela descrita mesa, que poderia estar numa casa de interior do Brasil. O título refere-se ao tempo de gravidez dessa jovem angustiada, estudante solteira. Nossa real heroína não é Gabita (Laura Vasiliu), mas sim sua fiel amiga Otilia (Anamaria Marinca). A república de estudantes universitários é decadente. Otilia circula por ela com grande desenvoltura, mostrando desde o início do filme que é uma jovem decidida e pragmática. O ano é 1987, às vésperas da queda do muro de Berlim. O regime político é do sádico ditador Nicolau Ceausescu. Temos diversas leis arbitrárias entre elas da contracepção e do aborto (este velho conhecido nosso). Este último é passível de prisão e, sem a contracepção, torna-se essencial. Gabita está grávida, mas não tomou nenhuma providência sobre o assunto. Apática e insegura delega à amiga os mais ínfimos detalhes para fazer o aborto. É insegura, mas é ditatorial.
A Romenia, nessa época, é um país quase fantasma. As ruas sujas, os prédios velhos e sem conservação, as pessoas com expressões duras e secas. É inverno, uma fina neve cobre as calçadas. À noite as ruas são apavorantes e escuras. Apenas alguns postes antigos de ferro com luzes bem fracas. Tudo deveria ter sido muito belo, mas agora está gasto e mal cuidado.
A missão de Otilia é ir até um determinado hotel, reservado por Gabita, confirmar a reserva e chamar alguém que faça o aborto clandestino, neste caso um homem, senhor Bebe. Nada disso se realiza. O quarto do hotel não pode ser ocupado, porque Gabita, irresponsável, o reserva por telefone, quando foi avisada a ir pessoalmente. A busca de outro hotel é angustiante, pois os funcionários são por demais burocráticos, desconfiados e sem nenhum interesse por outro ser humano. O prédio é decadente e as mobílias, apesar de boas, são ensebadas e velhas. O encontro com o Senhor Bebe é um completo fiasco, pois ele não quer fazer o serviço sem conhecer a pessoa. Também tinha pedido que ela fosse pessoalmente. Gabita não quer ajudar-se, pois se sente enfraquecida, mas a determinada Otilia convence-o a ir. Infindáveis perguntas são feitas à jovem grávida, que acaba confessando que está de quatro meses, três semanas e dois dias. “Isso é outro assunto”, diz ele, pois com mais de dois meses de gravidez o procedimento é de alto risco, pois ela e o bebê podem morrer e o preço é bem mais alto. Elas só têm determinada quantia, que o Senhor Bebe considera muito pouco. Todo o diálogo é realizado, quase que exclusivamente, entre Otilia e o jovem homem. Extenuada de tanto argumentar que não tem mais dinheiro, acaba fazendo sexo com ele, a pedido de Gabita, como parte do pagamento. Ele é um homem revoltante, apesar de jovem. Otilia sente-se imunda e vai ao toalete, lavando-se à exaustão. O procedimento é finalmente realizado. Gabita deverá ficar em repouso por muitas horas, para ter garantia de que o aborto seja bem sucedido. Otilia deixa-a sozinha por algumas horas para poder comparecer ao aniversário da mãe de seu namorado. Depois de tantos cuidados, desde a manhã, ela está exausta. O jantar de aniversário é festejado apenas por casais mais velhos, bastante intelectualizados, cuja companhia não é agradável a uma jovem cansada e preocupada. Ao despedir-se de seu namorado têm uma discussão sobre o tema “aborto”. A visão deles não é a mesma e ela se sente muito isolada e desamparada. Agora temos uma cadeia de acontecimentos aflitivos e tensos. Quando chega, Gabita já abortou e o feto está no chão do banheiro. Vagarosamente nossa heroína aproxima-se da possa de sangue e aturdida vê o feto, ainda em formação, enrolando-o numa toalha e depois num saco plástico, saindo desesperadamente à procura de um prédio alto, onde possa jogá-lo pela tubulação, para que não seja descoberto. Esse foi o conselho dado pelo Senhor Bebe, pois isso é um crime muito grave! Com o feto na bolsa ela percorre, às escuras, as ruas da cidade. Toda a tela é negra, com ocasionais pontos de luzes incidindo sobre seu cabelo loiro. Seu passo é rápido e sua respiração muito ofegante. Essa é a música do filme: seu arquejo! Encontrando o prédio certo ela volta para o hotel depois de cumprir essa missão horrível e perigosa! Chegando ao hotel é surpreendida por uma festa de casamento e, aturdida, encontra Gabita à mesa do restaurante com um prato vazio e uma garrafa de água. Ela estava esfomeada e resolvera comer alguma coisa, para surpresa de Otilia.
O filme termina nessa mesma cena, com as duas dividindo uma garrafa de água mineral. Só isso. Nenhum sentimento é expresso, mas é óbvio que Otilia está totalmente esgotada e preocupada com o bem estar da devoradora Gabita, e Gabita gostaria que o feto tivesse sido enterrado, mas resolvem nunca mais falar sobre o assunto.
Tudo isso: essa falta de apoio, essa desolação, essa desestrutura lembra muito um grande país do outro lado do mundo, na América do Sul. Vocês não acham?

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